O atual conflito na Ucrânia escancara as fragilidades de países que dependem do comércio internacional para suprir as necessidades alimentares de suas populações. Nada novo, convenhamos. No atual contexto internacional, ainda marcado pela COVID-19, a crise na cadeia mundial de suprimento de alimentos ocasionada pela pandemia continua sendo sentida, sobretudo nos países mais pobres. Parece ontem, os líderes de três importantes organizações internacionais no mundo – OMS, OMC e FAO – alertaram sobre os riscos de que “a incerteza sobre a disponibilidade de alimentos” pudesse “desencadear uma onda de restrições às exportações, gerando escassez no mercado global”. Os dirigentes apelavam para um engajamento entre líderes de todo mundo em torno da cooperação internacional para garantir o bom funcionamento do abastecimento alimentar internacional.
Em momentos de descrédito do multilateralismo e das instituições internacionais, parece que o apelo não funcionou como deveria. Escrevemos, ainda em 2021, sobre os efeitos que a crise pandêmica ocasionou no desabastecimento alimentar global, prejudicando majoritariamente a segurança alimentar de países pobres que dependem em muito da importação de alimentos. Isso porque, em momentos de crise global, países exportadores de alimentos tendem a restringir suas exportações para se precaver de alguma possível escassez alimentar súbita. Para os países pobres que dependem da importação de alimentos, portanto, resta sofrer com o agravante da fome.
O fantasma da restrição às exportações de alimentos retorna com a guerra em curso. Argentina, décimo maior produtor de trigo, já se adiantou e aumentou os impostos sobre as exportações da farinha do grão. Rússia e Ucrânia são, respectivamente, o quarto e o sétimo maiores produtores de trigo. A instabilidade do conflito, pois, ameaça a oferta global de trigo. Como resultado, o preço futuro da commodity disparou, tendo como fator adicional a alta no preço do petróleo. É provável que os preços de várias outras commodities agrícolas, como milho e arroz, fundamentais para o abastecimento alimentar mundial, possam ir às alturas.
Com os preços subindo, a insegurança alimentar aumenta em nível global, mas de forma desigual: os mais atingidos serão países pobres que já sofrem com a carestia. Países ricos, quando não são grandes produtores de alimentos, possuem capacidade financeira e logística para garantir a permanência do abastecimento alimentar interno, inclusive por meio de subsídios. Segundo dados da UNCTAD, 16 países do continente africano dependem em mais de 50% de importações do trigo russo e ucraniano; Egito, Benin e Somália chegam a mais de 80% de dependência do grão produzido em ambos os países. Outras regiões pobres do globo, como o Sudeste Asiático, a Ásia Central e os pequenos estados insulares em desenvolvimento, também podem sofrer com o agravamento da fome.
E o Brasil? A inflação dos alimentos castiga um dos maiores produtores agrícolas do mundo. Não há segredo: o aumento do combustível (atrelado à cotação internacional), a desvalorização cambial e a crise energética encareceram e diminuíram, em quantidade e em qualidade, a comida no prato do brasileiro. O desmonte de políticas públicas de promoção da segurança alimentar também ajudou a colocar o país de volta ao Mapa da Fome: em 2021, 55,2% dos lares sofreram com insegurança alimentar. Embora não produza trigo, o país é um grande consumidor dos seus derivados. O aumento do preço encarece a importação do grão e prejudica ainda mais o prato do brasileiro, ameaçando até a retirada do popular pão de sal (ou pão francês), cujo valor nutricional já é quase nenhum, mas que possui grande valor afetivo.
No final das contas, o momento não é um filme novo, mas ruim e velho. Já se assistiu na crise alimentar de 1972, com reprise na crise de 2008. A pandemia, agravada pela guerra na Ucrânia, indica que estamos presenciando os bastidores de um remake que pode ser pior do que as versões anteriores. Todas as crises alimentares recentes parecem apontar que a segurança alimentar internacional, confiada majoritariamente ao livre-comércio, coloca a vida de pessoas famintas à mercê da volatilidade do mercado.
Atos Dias. Doutorando em Ciência Política – UFPE
Publicado originalmente em Brasil de Fato PB
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